Força e Esplendor, por Helena Vasconcelos
As perturbações, as reacções e o desencadear de pensamentos, palavras e obras que a maior parte dos seres humanos experimenta quando contempla uma obra de arte têm sido objecto de estudo, discussão e especulação ao longo dos séculos. No momento em que algo passa a ter o estatuto de "objecto de arte" ( e não cabe aqui desenvolver a ideia de como essa complexa transmutação se processa mas basta recordar os "ready-made" de Marcel Duchamp), adquire imediatamente um enorme poder sobre os sentidos do espectador, provocando uma corrente – nos melhores casos, uma torrente – de fortíssimas emoções cujo leque se abre numa variedade incontável. Uma pintura, uma escultura, um simples desenho podem fomentar, desde o mais prosaico e primário desejo, instigado pela ganância – sabemos dos furtos em Museus e Galerias e da relação da obra de arte com a noção de "estatuto" que sempre impeliu os homens a englobar peças artísticas nos saques, depois das batalhas – à mais profunda reflexão estética, filosófica e metafísica. Não sentimos da mesma forma perante a espiritualidade de uma "madona" de Fra Angélico, a força mística de um rendilhado de pedra numa catedral medieval, a perturbação de uma cena de Bosh, o enigma de Mona Lisa, o caos e a pujança da Criação no tecto da Capela Sistina, a delicadeza pungente de uma escultura de Modigliani, a abstracção intelectual de uma tela de Malevich: a indignação, a revolta de ordem moral e política que nos acomete ao contemplar "Guernica" poderá ter pouco a ver com a satisfação e a saciedade sensorial ao olhar um nu de Bonnard ou uma natureza morta de Cézanne e a angustia demencial de Van Gogh atinge-nos de uma forma diferente da criatividade prometaica de Picasso. E estamos ainda a falar de territórios conhecidos e de imagens canónicas da nossa civilização, dita "ocidental". O que terão sentido os primeiros exploradores ao depararem-se com as estatuetas do Benim, as figuras gravadas nos templos indianos, as pinturas rupestres dos aborígenes, as câmaras fúnebres dos faraós egípcios, os colossos da Ilha da Páscoa?
Tudo isto serve o propósito de tentar fornecer pistas em relação a esse mistério que é o acto criativo. O que levou o homem – e a mulher – desde tempos imemoriais a criar? Seguramente para deixar um testemunho, uma marca da sua passagem pela Terra, o cunho da sua personalidade, a imagem do ambiente onde viveram, as cenas que presenciaram, aquilo que mais os afectaram, tanto positiva como negativamente. Na realidade, os seres humanos procuraram sempre, através da arte, uma forma de imortalidade, a negação da transmutação em pó, e apenas pó.
Foi, ainda, através da Arte que os seres humanos evoluíram, em termos civilizacionais. Da mera transcrição dos factos, como nas pinturas pré-históricas, com as suas cenas de caça e imagens de animais, as ideias foram-se complicando e aperfeiçoando. A Arte foi-se ligando à Filosofia, à Ciência – alguns dos mais belos e perfeitos desenhos de Leonardo da Vinci, por exemplo, relacionavam-se com as suas descobertas e projectos científicos – e, evidentemente, à Religião. Para além da simples representação, a prática artística passou a ser algo que implicava beleza e emoção, amor, reflexão e até temor e, ainda, conforto e prazer. Sem esquecer a ideia do poder e da glória: reis, príncipes, papas sustentaram melhor ou pior os artistas que souberam gravar para a posteridade os seus feitos – por vezes bem comezinhos – deixando uma marca, uma pegada, algo que os transcendesse e lhes perpetuasse a memória.
De uma forma mais sofisticada, a Arte passou a conter mistérios, porque o ser humano sempre entendeu a força dos símbolos. Mas, principalmente, e acima de tudo, o ser humano sempre desejou ardentemente contar – e que lhe fosse contada – uma boa história.
A grande maioria das obras de arte – seja em pintura, escultura, literatura, música, arquitectura – contam muitas histórias. Tome-se como exemplo um tipo de arte muito específico: a pintura dos Países Baixos ao longo do século XVII. Rembrandt e Vermeer – para falar apenas dos mais conhecidos – continuam a apelar ao nosso sentido estético e à nossa curiosidade. Maravilhamo-nos perante a beleza que demonstram, a técnica que exibem mas, principalmente, questionamo-nos sobre as histórias contidas naqueles quadros tão belos, tão reais e tão misteriosos. Porque razão ficamos em êxtase perante o retrato de uma jovem com um brinco de pérola, ou por um momento captado quando uma mulher lê uma carta ou um homem se debruça sobre uma mesa coberta de mapas ou, ainda, por um grupo de soldados a fazerem a sua ronda? Porque, para além da "plasticidade" que nos atrai – a delicadeza do desenho, a técnica da pintura, o cuidado com os detalhes, o fascínio dos cambiantes de luz e sombra, os pormenores dos cenários – há algo mais, isto é, a narrativa. Aquelas são pessoas reais em ambientes reais, a viverem a sua história o que as torna intensamente próximas de nós. São pessoas que sentem, estudam, amam, vivem e que, pela arte, pela mão do artista que as fixou no tempo "se vão da lei da morte libertando".
Se é verdade que, para além de sonhos a nossa vida é feita da interminável narração de histórias – amores e indiferença, luxúria e frieza, riso e lágrimas, esforço e descanso, alegria e tristeza, solidão e convivência, solidariedade e indiferença, nascimento e morte – e se, como todos sabemos, esta é também a fonte da criação literária, tudo converge nestes "tableaux vivants" que são as obras que compõem o ciclo cabo-verdiano de Clotilde. Porque há outros dois ciclos importantes na sua obra de que falarei mais adiante: o dos peixes e o das flores que, depois das pessoas e dos animais domésticos, compõem uma cosmogonia muito particular.
E é por aqui que é necessário escancarar as portas e janelas e entrar no universo da pintora. Quando Clotilde, que não conhecia África, foi pintar para Cabo-Verde, experimentou essa aventura com um espanto e curiosidade felizes e fecundas. Os africanos – aqueles africanos, naquela África – vivem festivamente ao nível da rua que é a continuação e muitas vezes a substituição das próprias casas sendo, também, o lugar para fazer negócio, para sociabilizar, para juntar os amigos e a família, para as crianças brincarem. É esse lado de grande palco da vida que Clotilde observou e transpôs para as suas telas, através das quais se sente o bulício, o cheiro, o ruído daquelas ruas animadas. Os nossos olhos estão ao nível dos olhos destas personagens que se debruçam a uma janela, se sentam num degrau ou se agacham a um canto, a nossa curiosidade é desperta pelo sussurro entre vizinhas e pela troca de olhares cheios de subentendidos das poucas figuras masculinas ou masculinizadas que surgem fugazmente em segundo plano. (vide exposição na Galeria MAC, Lisboa, em Outubro, 2005).
Mas tudo seria muito simples se a pintora – que é também escultora, ceramista e experimentadora em meios muito díspares – se limitasse a uma pintura meramente realista, algo que ela poderia fazer admiravelmente, uma vez que possui uma enorme capacidade técnica. Veja-se, por exemplo, a composição rigorosa e a pujança de um quadro como o que adorna a capa do catálogo da exposição já referida: uma jovem mulher está plantada no centro da composição. Tudo nela é redondo e macio: o abdómen que deixa adivinhar uma gravidez, os seios fartos, os grandes olhos doces, a curva generosa das coxas. Tem as mãos juntas envolvendo o ventre e, apesar de vestida, o triângulo do púbis está bem marcado. Pois esta mulher está ladeada por duas cabras bastante antropomórficas que espreitam por detrás do seu corpo. Bem, na realidade não são cabras – o que faria sentido para poder dar o leite à criança que está para nascer – mas sim bodes com as suas barbichas ligeiramente satânicas. Sabemos que os bodes representam o poder da procriação, a força da vida, a libido e a fertilidade mas também está ligado à tragédia grega. (Tragédia quer dizer em grego "a canção do bode" porque se sacrificava ritualmente um desses animais nas festas dedicadas ao deus Dionísio). No entanto, para além da perfeita colocação dos elementos nesta tela, o que Clotilde nos mostra permanentemente é a ordem maior do universo – a estreita relação entre pessoas, animais e plantas – e a desordem fecunda e criativa dos constantes embates entre esses mesmos mundos. Noutros quadros as mulheres, sempre elas, com o seu riso fácil, a sua gravidade sabedora, os seus lábios pulposos, as suas formas generosas e a sua bela cor negra são o centro primordial de toda a vida e actividade familiar e social. Elas desdobram-se em tarefas, em afectos, em olhares, em actos e insinuações. A casa – o lar, o aconchego, a protecção – e a Natureza – os animais, os frutos e, também, o fulgor da sexualidade – estão sempre presentes, ligados intimamente à mulher como ser essencial, central e magnificamente soberana, como criadora de vida e como provedora da subsistência e do bem-estar. Mas tudo nestes quadros é ambíguo e o erotismo – e a ironia - são traços comuns a todos os outros. As mulheres, à janela, são abraçadas por gatos lascivos, olhadas por macacos pensativos, desafiadas por galos inquisidores e provocantes. Os peixes, tal como os bodes de que já falei, estão também presentes como representação do alimento, da preservação da vida. Na psicanálise, o aparecimento em sonhos de macacos – que estão relacionados com a agilidade e a comicidade – convoca a luxúria e apela à auto-satisfação erótica; os pássaros são mensageiros entre mundos e os gatos são o símbolo, simultaneamente da gentileza e sensualidade mas também da crueldade; quanto aos galos, sabemos que são o símbolo universal do sol quando nasce, da energia e da luz. São associados de Apolo e, evidentemente, convocam a coragem para afugentar as trevas. Mas podem também representar a ira e a frustração do desejo não saciado. Há ainda um outro animal que surge sub-repticiamente e que faz lembrar um mitológico grifo, besta fabulosa que continha em si a representação do humano e do divino no mesmo corpo.
É difícil evitar a referência à riquíssima simbologia contida nos quadros de Clotilde, simbologia essa que é acentuada pelo uso opulento da cor: os vermelhos sangue, os amarelos e ocres solares, os azuis ultramarinos, os verdes luxuriantes, com os seus cambiantes infinitos dariam, por si só, para uma análise em separado, tal como o rigor da composição: linhas geométricas formando quadros dentro do quadro, esquadrias que emolduram as personagens e as cenas em vários planos, à maneira clássica, renascentista. Poder-se-ia, ainda falar dos traços de ironia na representação de cenas da vida comum e lembrar Pieter Brueghel.
Mas, a par de tudo isto et pour cause, em 1998, Clotilde fez uma exposição no espaço da Mãe D’Água, nas Amoreiras, em Lisboa, na qual apresentou grandes telas com peixes. Peixes que se enroscavam, se desenrolavam, se contorciam e se agarravam. Peixes vermelhos do mar de Macau, azuis petróleo, ocres, negros. Peixes com tentáculos como braços e mãos desesperados, com caudas de sereias para sempre condenadas às profundezas, tentando subir para a luz. Peixes-pássaros, peixes-gente, peixes-girinos em danças assustadoras ou simplesmente misteriosas. A exposição chamava-se "Meus Medos, meu Mar", o que explica bem essa espécie de assombro que tais seres provocavam, presos no seu elemento aquático – de onde todos nós provimos – celebrando o eterno ciclo do nascimento, morte e (re)nascimento. A representação, tanto destes peixes como alguns dos animais que surgem na série de Cabo-Verde, está intimamente ligada ao subconsciente e são elementos surrealizantes com uma referência explícita ao grande inspirador dos surrealistas, Hieronimus Bosh.
Clotilde parece ter ultrapassado os seus "medos" porque em 2003 apresentou uma série de pinturas totalmente ligadas ao mundo vegetal: são flores, plantas fantásticas num mundo luxuriante, exuberante, hedonista, capitoso. Um olhar mais atento desvenda uma iconografia riquíssima ligada a celebração do sexo, da eterna dança encantatória do feminino e do masculino, do yin e do yang. A representação de flores abrindo as suas pétalas como vulvas exuberantes recorda o trabalho de Georgia O’Keefe. Mas enquanto que as telas da pintora americana eram mais diáfanas e mais contidas, as de Clotilde são um deslumbramento de cor, de mistério que, como se sabe, provoca sempre um arrepio de prazer e de medo. O lado masculino apresenta-se em todo o seu esplendor nos estames dos antúrios (por exemplo) e recordam imediatamente as fotografias de Robert Mapplethorpe com o seu exibicionismo triunfante. No todo é o desejo e a morte, eros e thanatos que aqui se cruzam e desafiam.
De tudo o que aqui foi dito, ressalve-se o mais importante: a personalidade da pintora, da pessoa que criou estes universos em toda a sua exuberância e esplendor. A sua sensualidade desvenda-se a par e passo com o seu sentido de pertença; a sua calorosa ternura mistura-se com o espanto; o drama é temperado de ironia e o riso com lágrimas. Clotilde abarca o cosmos e fá-lo com distinção, raça, força e um sentido muito forte do que é ser-se humano. E, principalmente, MULHER.